1.ª Edição



Entrevista ao Professor Doutor Alfredo Teixeira



Teólogo, antropólogo e músico-compositor. O Professor Doutor Alfredo Teixeira, recentemente galardoado com o Prémio Internacional de Composição Fernando Lopes-Graça, veio falar-nos das suas leituras e do modo como estas se relacionam com a sua vertente musical.

O seu gosto pela leitura começou de uma forma muito especial…

O meu gosto pela leitura surgiu relativamente cedo. Mas, em todo o caso, foi muito centrado numa literatura, que talvez na infância da minha geração fosse mais rara, a literatura de divulgação do conhecimento, ou seja, fui em busca de livros sobre o porquê das coisas. No fundo, a minha primeira descoberta do livro foi a do “livro como acesso ao mundo e à sua complexidade” e, portanto, também livro como “mediador do conhecimento”. O livro como narrativa, como ficção, surgiu um pouco depois. Nesse segundo momento, em que o livro é mais especificamente literatura, houve alguns livros que permaneceram na minha memória de uma forma bastante duradoura. Existe uma pequenina coleção, versões em prosa feitas pelo João de Barros, com grandes livros como a Eneida e a Ilíada. Foi aí que surgiu o meu gosto por uma certa literatura clássica e pelo imaginário mitológico da cultura ocidental. Não sei precisar exatamente a idade, mas sei que foi na primeira adolescência. Recordo, de facto, o fascínio por aquelas figuras mitológicas, por vezes monstruosas.

Com o currículo impressionante e variado que tem, certamente já conta com vastas e variadas leituras. Há relação entre os livros que lê no âmbito profissional e pessoal?

Nesse âmbito as coisas “confundem-se” um pouco. Por um lado, permaneceu sempre um certo interesse pela literatura, e recordo, por exemplo, que no Secundário o meu investimento privilegiou o estudo da lírica camoniana. Portanto, de alguma forma, nunca assumi uma posição apenas exterior, como a do estudante que tem de ler aquilo por pura obrigação. As minhas leituras, mesmo escolares, acompanharam-me para toda a vida. Quando comecei a fazer uma leitura mais especializada, leituras mais filosóficas e teológicas, os interesses pessoais e académicos voltaram a cruzar-se. Mais tarde veio a antropologia. Mas, apesar de parecer uma trajetória de irregularidade, teve, na verdade, muitas continuidades. Sob este ponto de vista, alguns autores que academicamente fui descobrindo, conduziram-me eles próprios a uma aventura literária. Estou a pensar, por exemplo, num autor que trabalhei teologicamente, o René Girard, um antropólogo que trabalhou sobre um vasto arquivo literário. Ele começou a procurar aí o rasto de uma estrutura de comunicação humana, o desejo, e chegou ao problema fulcral das relações entre o sagrado e a violência, tema que durante alguns anos me ocupou bastante. Este autor levou-me à literatura enquanto dossier antropológico, permitindo-me o contacto com alguns dos autores que fazem parte do cânone literário ocidental como Cervantes, Stendhal, Dostoiévski, entre outros. No contexto do meu doutoramento, trabalhei muito sobre a obra deMichel de Certeau. Também ele me conduziu a outras literaturas, neste caso, a literatura mística. Neste sentido, é para mim difícil cindir a experiência de leitor no espaço profissional ou académico ou no universo mais pessoal. Essas duas vias cruzam-se com muita frequência.

Foi nestes autores que encontrou, os livros mais marcantes na sua vida…

Tenho de remeter para uma obra de cada um dos autores que referi, porque foram obras que introduziram um dinamismo importante na minha própria compreensão do mundo e na forma como pergunto, enquanto antropólogo, por exemplo, “o que é a religião na cultura?”. Nesse sentido, a obra de René Girard La Violence et le Sacré e a obra La Fable Mystique de Michel de Certeau são obras que, de alguma maneira mudaram a minha vida, transformando a minha forma de ler e pensar. Quase posso afirmar, deste ponto de vista, que estas duas obras são “tatuagens” que transporto no meu corpo de leitor (riso).

Gostaríamos de o congratular pelo prémio que vai receber em dezembro pela sua composição “O Menino Jesus numa estória aos quadradinhos”, obra vencedora do III Prémio Internacional de Composição Fernando Lopes Graça. Qual a relação entre as suas leituras e a música?

Há uma grande proximidade. A música para mim é uma respiração! Do ponto de vista profissional tive que fazer escolhas. A minha primeira profissão foi a de professor de música, mesmo antes de ser professor universitário, mas a dado momento essa escolha foi necessária. Contudo, a atividade musical esteve sempre presente, ainda que com altos e baixos, em dois domínios: por um lado a composição e, por outro, aquilo a que eu chamaria a animação musical da comunidade, concretizada sobretudo no trabalho com cantores amadores. Enquanto compositor, a minha obra musical tem uma relação umbilical com a literatura, porque a maior parte da minha obra é vocal-coral e acabo por trabalhar com muita frequência sobre materiais literários. A minha obra instrumental quase sempre parte, também, de motivos literários poéticos. O meu trabalho musical recebeu a influência constante das minhas leituras. Sobretudo a poesia, que é a minha biblioteca mais importante. Tenho trabalhado poetas como Daniel Faria, José Augusto Mourão, Ruy Belo, Manuel António Pina, Fernando Pessoa e também um poeta que me é muito caro, o padre José Tolentino Mendonça, cuja poesia acompanho desde que o conheci como colega estudante na Faculdade de Teologia. Aliás, devo ser o compositor que mais trabalhou sobre a sua poesia.

E o livro recomendado…

Escolheria um livro bíblico, o Livro de Job, porque aí se encontram, de forma notável, a teologia, a antropologia e a literatura. Por vezes tendemos a ignorar que a Bíblia é também um acontecimento literário. E, de facto, a questão de Deus, a questão do seu lugar na nossa compreensão do mundo, perguntas tão recorrentes como “o que é o mal; porque é que me acontece o mal; o que é que Deus tem que ver com isso”… enfim, algumas das questões centrais da experiência humana atravessam de forma singular a espessura literária daquele livro bíblico. Num outro dia poderia, certamente, escolher outra obra, mas pelo itinerário que a nossa conversa levou, teria de escolher este livro.

Job ou a Tortura pelos Amigos

Editora: Fundação Manuel Leão | Ano: 2012
Autor: Fabrice Hadjadj
ISBN: 9789898151308 | Págs: 76 
PVP: 8,50€ 
Preço UCP: 7,65€ (-10%)