2.ª Edição



Entrevista ao Professor Doutor Luís Caeiro



O Professor Doutor Luís Caeiro deu-nos a conhecer a sua perspectiva sobre literatura e a sua relação com o livro como objeto colecionável, numa conversa interessantíssima.

Quando surgiu o gosto pela leitura?

Surgiu muito cedo porque os livros sempre fizeram parte do meu quotidiano. A família já tinha um acervo importante que mais tarde vim a integrar na minha biblioteca. O meu pai era um bibliófilo criterioso, que reuniu uma biblioteca muito variada, para além do núcleo germanístico que era a sua área de especialidade e que também conservo.

No início da adolescência, levantava-me muito cedo para fazer uma ou duas horas de leitura, antes de entrar nas aulas. Lembro-me de ter vivido uma paixão camiliana que me levou a ler a colecção completa dos seus romances. Ainda hoje a guardo mas não seria capaz de repetir o feito. Interesso-me também pelo livro como objecto técnico e artístico. Reuni um conjunto interessante de edições ilustradas e encadernações editoriais do séc. XIX.

Dentro dessas obras há algum tema que o fascine?

Actualmente, leio sobretudo ensaios, obras técnicas ligadas às minhas áreas de especialidade, a Liderança e a Gestão de Recursos Humanos. Mas reservo sempre algum tempo para as minhas áreas de eleição: filosofia política e história contemporânea.

Quais os autores que mais o marcaram ao longo da sua vida?

Não tenho autores que me marcaram, mas sim livros. A leitura é uma atividade que não devemos centrar em autores, mas nos conceitos de diálogo, viagem e experiência. As grandes obras libertaram-se dos seus autores. É importante saber quem foram Homero, Camões, Cervantes ou Shakespeare? A leitura é uma experiência activa de diálogo e as grandes obras são as que nos abrem a porta aos confrontos mais ricos e desafiantes, para além do espaço, do tempo e das circunstâncias. A leitura é a forma mais autêntica de globalização. Ao ler, discutimos com Górgias, em Atenas, partilhamos as reflexões do imperador-filósofo Marco Aurélio, em Roma, surpreendemo-nos com o arrojo com que Maquiavel separou política e ética, na Florença do sec XVI, vemos a revolução francesa pelos olhos do conservador inglês Edmund Burke, e interrogamo-nos sobre o futuro da liberdade na sociedade contemporânea, com Karl Popper, no seu retiro neozelandês.

Ao longo dos anos fui compreendendo temas e dimensões humanas que a leitura me ajudou a explorar. Ler Kant revelou-me como a razão é capaz de mergulhar em si própria, para definir os seus limites e possibilidades; “A Origem das Espécies”, de Darwin, mostrou-me como a razão parte da análise dos fenómenos para "ler" o sentido profundo da natureza; a reflexão de Tocqueville sobre "A Democracia na América" surpreendeu-me pela forma como a subtileza interpretativa dá sentido à complexidade social. A obra do Padre António Vieira, um dos mais notáveis pensadores portugueses, sobretudo a parenética e a epistolografia, evidenciaram-me como o rigor dialectico pode ser igualmente penetrante na reflexão teológica e sociológica, na compreensão e na acção.

Outra dimensão que a leitura me revelou foi o Homem na sua subjetividade, o plano intimista. Das obras com mais significado destacaria “As Confissões" de Santo Agostinho, “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, “Ulisses” de James Joyce e o "Diário Íntimo", de Amiel. Ler também me deu a possibilidade de olhar a alma humana: aqui destacaria sem qualquer hesitação a prima secundae partis da Suma Teológica, de S. Tomás de Aquino, e também as obras de William Shakespeare. A dimensão do ser humano que se interroga sobre si próprio, apareceu-me em Platão, S. Agostinho e Hanna Arendt, e numa verdadeira pérola que é "O Principezinho”, de Saint-Exupéry. Por último, o homem que luta contra si próprio e os seus limites, com os livros “Moby Dick”, de Melville, e “O Velho e o Mar”, de Hemingway.

Nos últimos anos tenho-me dedicado ao estudo da filosofia social e política. Continuo a surpreender-me (e a assustar-me) com o número de livros que actualmente se publicam sobre a felicidade e a forma de a alcançar. Estas obras podem originar consequências trágicas, como já aconteceu no passado recente, porque cada vez que se pensa ter descoberto a fórmula da felicidade, e ela se converte em ideologia, emerge o radicalismo e instala-se a violência. Sou crítico relativamente a este tipo de obras, porque enquanto perseguimos a felicidade descuramos a virtude. A procura da felicidade é um poderoso motor do desenvolvimento tecnológico e da melhoria das condições materiais de vida, mas é um conceito sem universalidade e por isso carece de fundamentação ética. A felicidade é um conceito pessoal e sempre que fazemos dela a razão de vida prosseguimos um caminho que dificilmente será construído com os outros, mas quase sempre contra eles. É importante retomar questões muito actuais de ética social como forma de dar resposta à crise contemporânea.

Há algum livro a que torne sempre?

Os livros a que se regressa sempre são muito poucos e podem resumir-se aos textos fundamentais das grandes religiões. Se não os considerar aqui, o meu retorno a livros é algo atípico. O que acontece com frequência é acabar de ler um livro e lê-lo segunda vez. Um bom livro faz-nos sempre novas revelações em cada leitura. É sempre outro livro. É mais frequente revisitar livros que já li quando aparecem referidos ou relacionados com livros que estou a ler. Voltei a ler, de facto, anos mais tarde, alguns livros que li em contexto escolar mas pelos quais não me interessei. A sua releitura livre, descontraída e com os olhos da maturidade, foi uma verdadeira revelação: os autos de Gil Vicente, “As Cidades e as Serras”, “As Viagens na Minha Terra”, "Os Lusíadas", "O Sermão da Sexagésima", "Os Apólogos Dialogais"...

Os grandes livros estão sempre abertos ao diálogo com o leitor e são capazes de colocar novas questões, plenas de significado, cada vez que são lidos. Tornam-se, por isso, intemporais.



As obras referidas ao longo da entrevista poderão ser adquiridas na Livraria UCP.